segunda-feira, junho 12, 2006

Venda do Património do Estado: Uma oportunidade para a Cidade e para os Cidadãos?


A venda de parte significativa do património imobiliário do Estado na cidade de Lisboa tem sido objecto de sucessivas referências na imprensa.
Anuncia-se uma mudança na imagem da cidade, fala-se do interesse de grandes grupos imobiliários na aquisição desse património, o que terá levado o Presidente da Câmara de Lisboa a anunciar que “estaremos cá para fazer face às tentações do imobiliário”( Público de 14-05-06).
Esta venda de património devoluto do Estado aparece num contexto muito marcado pela dificuldade do Governo em eliminar o défice das contas públicas e pela necessidade imperiosa de aumentar as receitas do Estado.
No entanto, apesar do contexto, importa colocar as seguintes questões:
Está este conjunto de alienações ao serviço de uma Política das Cidades? Pretende-se aproveitar o valor económico e estratégico do património devoluto para concretizar uma visão estratégica que promova e estimule processos de recomposição social e de reordenamento urbano de que Lisboa está tão carenciada?
Historicamente, em Portugal, os momentos em que o Estado promove a alienação do seu património imobiliário considerado devoluto - e não cabe aqui a legítima e prévia discussão sobre a legitimidade de se desactivarem equipamentos públicos para os substituir por imobiliário privado - constituem-se como ocasiões excepcionais para a promoção imobiliária obter significativas mais-valias. O caso, recentemente noticiado pelo Público, no Local de 27 de Maio, da alienação do antigo quartel da Alameda das Linhas de Torre - cuja edificabilidade, definida no PDM, era nula à data da aquisição facto que não demoveu o generoso comprador de investir 7,5 milhões de euros - é paradigmática de como as regras do urbanismo não constituem obstáculo à captura, por parte dos promotores privados, das mais-valias geradas pelas mudanças de uso dentro do uso urbano e pela densificação urbana decididas pela Administração Pública. Passados alguns anos, a edificabilidade do terreno já esteve para ser superior a 50 mil metros quadrados de construção e, parece, prepara-se agora para ser fixada em 30 mil, permitindo ao investidor a captura de mais-valias que são muitas vezes vezes superiores ao capital investido, o que justifica e compensa largamente a aparente generosidade inicial e, porque não dizê-lo, o tempo de espera. Em toda a Europa e na América do Norte o Estado tem vindo a alienar partes do seu património imobiliário tornado obsoleto. No caso Francês, a “recyclage” urbana envolveu sobretudo a reconversão dos terrenos militares mas também do próprio edifícado urbano. Recorde-se que os franceses iniciaram um processo de requalificação do parque habitacional social – conhecido pela sigla HLM de “habitation à loyer modéré” - que levou, nos últimos anos, à demolição de dezenas de milhares de fogos .
O que importa salientar é o facto de, no caso dos terrenos militares, o Ministério da Defesa francês ter criado uma Missão para a Realização dos Activos Imobiliários (MRAI) cuja actividade é enquadrada pela lei geral que regula a alienação do património do Estado e pelo Código do Urbanismo. Esta entidade está impedida de alienar directamente aos privados e tem como seu principal interlocutor os poderes locais. O objectivo não é apenas fazer dinheiro, uma questão naturalmente importante que não é descurada, mas permitir uma reflexão urbana prévia à volta dos referidos espaços a libertar.
O mesmo acontece na Holanda que elegeu a combinação de usos como o objectivo maior da reciclagem urbana. Pretende-se contariar a tendência, estimulada durante anos pelo zonamento do urbanismo do movimento moderno, de transformar os quarteirões em espaços puramente residenciais, trazendo para esses espaços as pequenas empresas de comércio e serviços e os artesãos. Pretende-se apoiar o desenvolvimento durável reduzindo o número de deslocações automóveis necessárias que, como se sabe, nas cidades segregadas, como é cada vez mais o caso de Lisboa, atinge dimensões insustentáveis.
Podíamos referir o exemplo da bacia do Ruhr, com o fim do processo de industrialização a permitir o reordenamento dos espaços devolutos industriais, elegendo como objectivo primeiro dessa intervenção trazer todos os grupos sociais à cidade – caso de Dortmund – fomentando o pluralismo sócio-económico.

Do ponto de vista da cidade, a venda do património do Estado pode ser, deve ser, uma oportunidade imperdível. Trata-se de aproveitar a possibilidade de intervir no processo de produção urbana de forma a obter as respostas negligenciadas pelas dinâmicas dominadas pelos promotores imobiliários. Trata-se de trocar uma lógica de produção urbana segundo a qual os interesses da oferta se sobrepõem aos da procura, uma lógica que faz da cidade um produto e dos cidadãos meros consumidores, por uma outra em que os interesses das diferentes procuras, de todos os grupos sociais independentemente da sua capacidade económica, sejam atendidos na definição da oferta.
Para isso a Cidade deve planear as mudanças necessárias fazendo do Espaço Público o terma central das diferentes intervenções urbanas. Um Espaço Público democrático o que pressupõe uma cidade inclusiva que faça da habitação para todos, do repovoamento e do combate à segregação dos usos e das pessoas as alavancas do processo de recomposição social e de reordenamento urbano.
Não é necessário vir com os fantasmas do financiamento público zero, que tem sido utilizado como o “alíbi” político para justificar a oportunidade dos investimentos privados. Basta que a Administração retenha as mais-valias do processo de transformação urbana e que introduza um sistema perequativo em que as mais-valias geradas pelos usos de maior poder aquisitivo são canalizados para financiar as intervenções destinadas a dar respostas aos sectores mais carenciados. Isto sem hipotecar a possibilidader de o Estado Central realizar as verbas necessárias para fazer face ao sufoco das contas públicas. Pelo contrário, permitindo-lhe resistir à fatalidade de alienar o património a preços de pechisbeque e valorizar em proveito de todos o património que... é de todos.
A cidade agradece. Talvez então a “cidade para os cidadãos” comece a fazer sentido para lá da pura retórica. Uma cidade plural, democrática, não guetizada, não segregada. Uma cidade de todos e para todos e não, como referia (Expresso de 6 de Maio) um eminente membro do Comissariado Baixa-Chiado, Augusto Mateus, a propósito da nova Baixa, uma cidade apenas para os que têm poder de compra.


José Carlos Guinote

Engenheiro Civil pelo IST
Mestre em Planeamento Regional e Urbano pela UT

Publicado no Público -Caderno Local de 11-06-2006


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