segunda-feira, junho 25, 2007

A Fruteira da vereadora e o Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território



Texto de opinião publicado no jornal Público em 6 de Agosto de 2006

A Fruteira da Vereadora e o Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território.

Provocou alguma polémica a decisão da vereadora da Câmara de Lisboa, Maria José Nogueira Pinto (MJNP), de excluir os jovens imigrantes do acesso aos fogos de um programa de habitação cooperativo no Casalinho da Ajuda. A vereadora argumentou com a necessidade de evitar a criação de “misturas explosivas” e afirmou que “isto [a Cidade, supõe-se] não é uma fruteira onde se possam meter bananas, maçãs e laranjas e dizer que está tudo bem.” (Público Local de 30/06/06).
Por coincidência está neste momento em discussão pública o Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território (PNPOT) que estabelece como seu 4º Objectivo Estratégico (Capítulo 2 do Programa de Acção do PNPOT, p39) assegurar a equidade territorial no provimento de infra-estruturas e de equipamentos colectivos e a universalidade no acesso aos serviços de interesse geral, promovendo a coesão social” e entre outros Objectivos Específicos "melhorar as condições de habitabilidade nomeadamente no que se refere aos grupos sociais mais vulneráveis". O mesmo PNPOT que, para concretizar esses objectivos, elege como Medidas Prioritárias "promover a inserção nos instrumentos de planeamento municipal dos objectivos sociais de combate à segregação urbana e de acolhimento e integração dos imigrantes, designadamente através da institucionalização dos princípios da variedade e mistura de usos e tipologias de habitação” e "incentivar o "cumprimento de objectivos sociais por parte dos promotores imobiliários designadamente através da afectação de uma quota parte da habitação nova ou a reabilitar a pessoas com carências económicas".(p. 42)
Este objectivo é ipsis verbis o reconhecimento de que existe um problema, gerado pelo modelo de desenvolvimento urbano seguido nas últimas décadas, que se traduz no crescimento da segregação espacial das populações, com reflexos graves na perda de coesão social e na falta de equidade territorial. E, ao mesmo tempo, o reconhecimento de que a articulação das políticas urbanísticas com as políticas de habitação é fundamental para a concretização desses objectivos.
Devemos aplaudir o PNOPT por ter objectivos tão estimáveis, e por os elevar à dignidade de política de Estado, mas não podemos deixar de salientar alguns aspectos que parecem equívocos na formulação colocada a debate.
Em primeiro lugar, não são muito esclarecedoras as propostas adiantadas sobre a forma como se concretizarão os objectivos. Inscrever esses objectivos nos instrumentos de planeamento municipal é um dos caminhos apontados. Mas, para isso, o conteúdo material dos Planos Directores Municipais, dos Planos de Urbanização e dos Planos de Pormenor tem que ser revisto, deixando de ser completamente omissos, entre outros aspectos, sobre a questão da habitação. Quando e como será concretizada essa mudança?
A omissão que caracteriza a legislação actual não tem permitido prevenir nem a concentração da habitação social – justificada durante muitos anos com a urgência de dar respostas a grupos sociais alvo de exclusão social - nem a sua rejeição por elites que aspiram a viver entre os seus, nos seus condomínios privados. As regras do planeamento urbanístico têm sido incapazes de promover uma organização funcional e social do espaço urbano, geradora de coesão e de equidade.
Podemos socorrer-nos do exemplo francês que, desde os anos 70, tenta cumprir objectivos, expressos no Código do Urbanismo, de combate à segregação espacial e de reforço da coesão social, os quais no entanto, não impediram a degradação da situação culminando nos acontecimentos do último Inverno nos subúrbios de Paris.
Depois de algumas décadas de fracasso, a publicação da LOV – Lei de Orientação para a Cidade – em 13 de Maio de 1991, veio obrigar os municípios com mais de 10.000 habitantes a cumprirem o objectivo de terem pelo menos 20 por cento dos seus fogos afectos ao parque social. Esta lei foi, uma década depois, substituída pela SRU – Lei da Solidariedade e da Renovação Urbana – de 13 de Dezembro de 2000, que defendia os princípios da LOV mas visava eliminar os aspectos que tinham permitido o seu boicote mais ou menos generalizado.
Ora, esse boicote foi sobretudo concretizado pelos autarcas ao recusarem estruturar à escala dos seus concelhos uma oferta social ou por, quando a construíram, o terem feito de uma forma segregada e usando do seu poder para a subverter através da manipulação das condições de acesso. O caso mais famoso foi o do actual ministro, Sarkozy, à data maire de Neuilly um dos municípios mais elitistas de Paris, que se recusou a cumprir os objectivos da LOV, aceitando os seus munícipes o agravamento dos impostos municipais em consequência dessa opção. A SRU veio impor o respeito pela lei, com pesadas consequências financeiras para os municípios incumpridores, recorrendo à ameaça financeira e às sanções para vencer os egoísmos locais e garantir uma melhor repartição espacial da oferta de habitação social no território. Veio esclarecer o que são os tais 20% de habitações sociais que, nos termos da SRU, são fogos para arrendamento social. Mas, sobretudo, veio obrigar à articulação estratégica entre as competências do urbanismo e as da habitação, impondo que os diferentes documentos do urbanismo estabeleçam as condições de forma a assegurar a “diversidade das funções urbanas e a mistura social na habitação urbana tendo em conta em particular o equilíbrio entre emprego e habitação” (ARTº 1º da SRU).

É desta realidade que nos dá conta a fruteira da vereadora. Mais do que defender um modelo segregado de organização da cidade - que foi concretizado ao longo de décadas pelas diferentes maiorias que o município de Lisboa conheceu e de que a expressão mais brutal foi a perda, em 20 anos, de cerca de 300 mil habitantes, expulsos para as periferias – trata-se de dar um passo mais e passar a defender um urbanismo de separação. Numa cidade em que a percentagem de condomínios privados não para de crescer - eles que são a expressão de uma segregação voluntária, desejada pelas classes mais favorecidas, mas sobretudo a manifestação da fragmentação do modelo de organização económica e política do território, expressão de verdadeiras “democracias de accionistas” e de uma forma privada de poder local - trata-se agora de, mesmo nos programas públicos destinados aos grupos sociais mais desfavorecidos, estabelecer critérios de separação étnicos ou de outra natureza. O suporte ideológico para este tipo de prática parece remeter para as políticas de segurança citadina, made in USA – as famigeradas políticas de “tolerância zero” que se apoiam na segregação dos colectivos sociais e étnicos e conduzem à criminalização dos mais desfavorecidos.
Neste sentido é equívoco o outro caminho proposto que aponta para a necessidade de sensibilizar os promotores. Mais do que sensibilizar os privados, o Estado tem que acabar com as suas próprias omissões e estabelecer de forma clara e quantificada os seus objectivos e os mecanismos para a sua concretização. Deve depois exigir dos seus agentes o irrecusável e inegociável cumprimento das regras do jogo. Neste contexto, aos promotores nada mais restará do que o estimável papel de serem insubstituíveis parceiros e agentes das mudanças.
A PNOPT dá um passo nesse sentido, mas certamente são necessários mais de dois.

PS- A discussão pública deste importante documento decorre num verdadeiro estado de não participação apesar dos esforços da Secretaria de Estado. Com milhares de autarcas e muitos milhares de técnicos municipais a trabalhar nestas áreas espanta tanto silêncio. A menos que este ruidoso silêncio seja a confirmação de que o conhecimento disponível chega e sobra para a gestão burocrática do urbanismo e para a, citando Paulo Morais, eficiente organização da transferência de meios públicos para mãos privadas. Para o essencial.


terça-feira, junho 05, 2007

Mudar o Urbanismo, Melhorar Lisboa


MUDAR O URBANISMO, MELHORAR LISBOA


Na edição do Público do passado dia 7-07-2005, o engenheiro Jorge Jacob, Director-Geral dos Transportes Terrestres, contestou a intenção da candidatura de Manuel Maria Carrilho de reduzir a metade o número de carros que entram em Lisboa. Não por não ser estimável o objectivo da candidatura socialista mas por ser inviável, recorrendo a soluções de pura engenharia de transportes. O problema, como referiu Jorge Jacob, é do puro e simples domínio do urbanismo e só aí poderá encontrar solução.
A grande mudança que não pode ser adiada, diz respeito à devolução à cidade de Lisboa daqueles que, sobretudo nos últimos 20 anos, foram expulsos para os subúrbios, com a pequena “chatice” de serem todos os dias necessários para trabalharem na cidade.
Entre 1981 e 2001 Lisboa perdeu em média 13.600 habitantes por ano, passando de uma população de 841.000 mil habitantes para 565.000. Tem hoje uma densidade populacional de 67 habitantes por hectare quando por exemplo Barcelona, uma cidade com uma área semelhante (96 lm2 contra 85 Km2 da capital portuguesa) tem uma densidade de 153 habitantes por hectare, isto é, quase três vezes e meia a densidade de Lisboa. A perda de população não afecta igualmente todos os grupos sociais. Afecta sobretudo as classes de menores rendimentos e os jovens que pretendem aceder à primeira habitação ou seja aqueles que não encontram na Cidade oferta compatível com a sua capacidade de endividamento.
Ora esta perda de população e esta perda de densidade podem pôr em causa o próprio conceito de cidade democrática, lugar privilegiado de circulação e de troca da informação, lugar da inovação, das liberdades urbanas, da diversidade e da heterogeneidade sociais e dos valores democráticos. Uma cidade segregada socialmente, como Lisboa tende a ser cada vez mais, deixa de ser esse lugar.

Esta situação não resulta da ausência de urbanismo, pelo contrário é o produto do urbanismo que temos tido. Um urbanismo funcionalista que combinou os males do zonamento com a privatização do espaço público, com a estrutura urbana a crescer através de tipologias edificatórias de grande escala, com uma estrutura urbana interna, auto-excluída da lógica da cidade e concretizada pelos poderosos promotores imobiliários que operam na cidade. Um urbanismo que desvaloriza o planeamento físico materializado nos conteúdos do desenho urbano e o protagonismo social e estético do espaço público urbano.
Um urbanismo cujos instrumentos de planeamento de pormenor são considerados dispensáveis uma vez que é possível construir na sua ausência e os PDM´s tratam, desde logo, da “magna” questão da valorização da propriedade fundiária com a sua perversa atribuição de índices, criando condições para um desenvolvimento urbano resultado de uma colagem de urbanizações. Instrumentos de planeamento esses que são completamente omissos relativamente às questões da propriedade imobiliária, da propriedade fundiária, das mais-valias simples (decorrentes das alterações do uso do solo ou das autorizações de densificação associadas às operações de renovação urbana) da segmentação dos usos do solo e das políticas de habitação.

É necessário combater a segregação espacial das populações de menores rendimentos. Combater a Lisboa elitista, com o seu urbanismo de produtos submetido às regras e à força económica da iniciativa privada, uma Lisboa só para os “happy few” capazes de aceder ao monoproduto imobiliário disponível na cidade, caracterizado pela proximidade do rio, em zonas histórias renovadas pela iniciativa privada, com assinaturas de grandes arquitectos, legitimadoras deste urbanismo de urbanizações, e apreços exorbitantes.
A solução está de facto no urbanismo, como afirmou Jorge Jacob. Mas não neste urbanismo da exclusão social, que transformou a vida na cidade numa coisa insuportavelmente dispendiosa em tempo de transporte. Um urbanismo que, apesar de uma despesa brutal em acessibilidades e transportes, feita à custa dos recursos dos contribuintes do país inteiro, no essencial, não só não resolveu o problema como o agudizou.
É necessário um urbanismo que estabeleça a diferença
entre os planos de afectação do solo a classes de uso e os planos de utilização do solo e que impeça a actividade de licenciamento municipal sem a prévia aprovação de Planos de Pormenor. Mas que os torne imperativos evitando a actual situação de separação entre oferta potencial e oferta real de terrenos urbanizáveis e impeça as práticas especulativas associadas a este fenómeno.
Um urbanismo que promova a socialização das mais-valias simples que resultam de decisões da Administração. Que trate a política de habitação com a devida atenção e não como uma simples referência, inconsequente, numa alínea do artigo da lei que estabelece o conteúdo material dos PDM´s, dos PU´s ou dos PP´s. Que estabeleça, nos PDM´s e nos PU, os objectivos da política de habitação que se pretende adoptar para a cidade. Que caracterize a situação existente e as diferentes procuras a que importa dar resposta. Que explicite os objectivos de combinação de usos, evitando uma situação de produção de fogos comandada pela oferta, a monofuncionalidade do sistema urbano e a segregação espacial das populações. Que estabeleça a percentagem de fogos a construir para cada uma das procuras: aquisição de casa no mercado livre, arrendamento privado, arrendamento social e insolventes. Mas que concretize essas propostas no planeamento de pormenor. Um urbanismo que trate da habitação entendida no seu sentido mais amplo e não reduzida às questões da habitação social. Que fixe as grandes linhas de acção para um indispensável reequilíbrio da oferta residencial, a diversificação e a requalificação dos quarteirões muito tipificados e que dê respostas às seguintes questões:
controle da situação de alta constante dos preços do imobiliário com a sua parametrização para os diferentes segmentos da procura: promoção da existência de um sector do arrendamento privado, com a abolição de medidas espúrias tais como o congelamento das rendas;
adopção de políticas fiscais incentivadoras da construção para arrendamento;
promoção da existência de um sector de arrendamento social capaz de dar resposta a este sector da procura, com políticas fundiárias municipais concretas que estimulem a criação de reservas fundiárias municipais ou em parceria com cooperativas de habitação e instituições de solidariedade social.
Um urbanismo que valorize o espaço público e que permita a sua apropriação em condições de igualdade por parte dos diferentes grupos sociais.
Lisboa pode representar uma oportunidade para alterar o que está mal na cidade e no país. Uma oportunidade para substituir um urbanismo de exclusão por um urbanismo de inclusão, para permitir às pessoas participar na discussão da cidade e do seu futuro. É um desafio e uma responsabilidade da cidade capital e nesse sentido uma grande responsabilidade de todos os candidatos. Recusar essa responsabilidade será a maior de todas as derrotas.
Artigo publicado no jornal Público em 21 de Agosto de 2005.


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