segunda-feira, janeiro 30, 2006
A lenta dissolução dos partidos
A partir da leitura da análise que Pacheco Pereira faz da dissolução das estruturas partidárias julgo ser interessante tecer algumas considerações.
Em primeiro lugar a realidade que Pacheco Pereira identifica e que se traduz na incapacidade dos partidos de recrutarem pessoas qualificadas por contraponto com a disponibilidade que essas mesmas pessoas manifestam para participar em comissões de honra e conferências tipo “Novas Fronteiras”, grupos de estudo etc, julgo que não se coloca no campo das fatalidades mas resulta de opções e escolhas que os partidos conscientemente fizeram.
Os partidos evoluíram no sentido de se assumirem cada vez mais como estruturas de representação em primeiro lugar dos interesses dos seus militantes, abdicando da sua vocação de representação dos interesses de amplos sectores da sociedade. Desta forma são hoje cada vez menos estruturas de representação política e cada vez mais estruturas de representação corporativa. Este facto torna a luta interna pela promoção política e o acesso a lugares de poder, que garantam influência e longevidade na função, particularmente dura e desleal, não sendo claro que existam condições para a ascensão dos mais qualificados, dos mais capazes, dos que têm vida profissional para lá da vida partidária, sendo possível que pequenos tiranetes possam, facilmente, impedir a sua ascensão nas estruturas partidárias. Ora cada vez menos gente está disponível para passar por esse tipo de provação existindo alternativas de aproximação aos lugares apetecíveis muito mais “baratas” e eficazes mas que, infelizmente, não contribuem para travar o declínio das estruturas partidárias.
A meritocracia não foi instituída na vida partidária e isso releva da escolha que referi. A vida partidária é hoje na generalidade das situações entendida como uma possibilidade de carreira muito compensatória independentemente do nível e da qualidade das aptidões profissionais de que se disponha.
As famosas quotas dos secretários-gerais para a formação dos grupos parlamentares é uma evidência desta situação e resulta do facto de se pretender atenuar os efeitos arrasadores desta realidade na composição/qualificação dos grupos parlamentares. Com resultados medíocres, no entanto, até porque os secretários-gerais não podem descurar os seus apoios internos.
É nas estruturas locais e no seu modo de funcionamento que está o cerne da questão a meu ver. Essas estruturas locais fechadas que Pacheco Pereira refere, são locais por excelência da não discussão política, da não discussão de projectos de intervenção política ao nível local ou regional. Estruturas fortemente apolíticas nas quais a simples compreensão de uma conta de gerência ou de uma proposta de orçamento municipal se revela uma tarefa ciclópica para a generalidade dos militantes, quanto mais um plano de ordenamento do território ou a visão estratégica para um concelho num horizonte temporal de médio/longo prazo.
É claro que faltando estas qualificações básicas para a intervenção política sobram “qualificações” para o estabelecimento de cumplicidades com os poderes económicos que vampirizam a vida dos partidos, como referiu o Dr. Paulo Morais na última campanha eleitoral. Em particular com os sectores associados ao imobiliário. Esta inexistência de um determinado tipo de aptidões e a existência de outras contribui para a dissolução da especificidade partidária. O que será hoje o projecto autárquico do partido A,B ou C, e não excluo o PCP ou o BE.
A debilidade dessas estruturas locais faz com que a sua direcção política seja muitas vezes pré-determinada pelas opções dos presidentes das federações contrariamente ao que em tese se passaria com aqueles a emanarem das escolhas dos organismos de base. São estes homens e mulheres, que em regra, no PSD e no PS, passam pelos Governos Civis, que põem e dispõem na vida dos partidos ao nível local e que passados alguns meses de ascenderem ao poder criam a base para aí se perpetuarem.
Existem soluções para estas situações que como referi não resultam de uma fatalidade mas de escolhas. Defendo há anos que uma intervenção deve passar em primeiro lugar pelo nível local. Limitando os mandatos, simplificando as candidaturas independentes, pondo fim aos executivos pluripartidários - separando poder executivo de poder legislativo - reforçando os poderes e os meios das Assembleias Municipais como órgãos de efectivo controle democrático da função executiva .
O problema é que a classe política, que não se regenera de per si, não está para aí virada. Ninguém abdica dos seus privilégios, nem das benesses que desde sempre elegeu como o seu objectivo principal e que justificam os sacrifícios que fez. Talvez por isso só em 2013, na melhor das hipóteses, a limitação de mandatos será efectiva.
Até lá vai continuar a crescer a descrença nos partidos e nos políticos, campo fértil para o florescimento de todo o tipo de populismos. E vai continuar a degradar-se a qualidade da intervenção partidária pelo que as escolhas que colectivamente teremos que fazer serão muito provavelmente más escolhas e escolhas, irremediavelmente, fora do tempo.
Em primeiro lugar a realidade que Pacheco Pereira identifica e que se traduz na incapacidade dos partidos de recrutarem pessoas qualificadas por contraponto com a disponibilidade que essas mesmas pessoas manifestam para participar em comissões de honra e conferências tipo “Novas Fronteiras”, grupos de estudo etc, julgo que não se coloca no campo das fatalidades mas resulta de opções e escolhas que os partidos conscientemente fizeram.
Os partidos evoluíram no sentido de se assumirem cada vez mais como estruturas de representação em primeiro lugar dos interesses dos seus militantes, abdicando da sua vocação de representação dos interesses de amplos sectores da sociedade. Desta forma são hoje cada vez menos estruturas de representação política e cada vez mais estruturas de representação corporativa. Este facto torna a luta interna pela promoção política e o acesso a lugares de poder, que garantam influência e longevidade na função, particularmente dura e desleal, não sendo claro que existam condições para a ascensão dos mais qualificados, dos mais capazes, dos que têm vida profissional para lá da vida partidária, sendo possível que pequenos tiranetes possam, facilmente, impedir a sua ascensão nas estruturas partidárias. Ora cada vez menos gente está disponível para passar por esse tipo de provação existindo alternativas de aproximação aos lugares apetecíveis muito mais “baratas” e eficazes mas que, infelizmente, não contribuem para travar o declínio das estruturas partidárias.
A meritocracia não foi instituída na vida partidária e isso releva da escolha que referi. A vida partidária é hoje na generalidade das situações entendida como uma possibilidade de carreira muito compensatória independentemente do nível e da qualidade das aptidões profissionais de que se disponha.
As famosas quotas dos secretários-gerais para a formação dos grupos parlamentares é uma evidência desta situação e resulta do facto de se pretender atenuar os efeitos arrasadores desta realidade na composição/qualificação dos grupos parlamentares. Com resultados medíocres, no entanto, até porque os secretários-gerais não podem descurar os seus apoios internos.
É nas estruturas locais e no seu modo de funcionamento que está o cerne da questão a meu ver. Essas estruturas locais fechadas que Pacheco Pereira refere, são locais por excelência da não discussão política, da não discussão de projectos de intervenção política ao nível local ou regional. Estruturas fortemente apolíticas nas quais a simples compreensão de uma conta de gerência ou de uma proposta de orçamento municipal se revela uma tarefa ciclópica para a generalidade dos militantes, quanto mais um plano de ordenamento do território ou a visão estratégica para um concelho num horizonte temporal de médio/longo prazo.
É claro que faltando estas qualificações básicas para a intervenção política sobram “qualificações” para o estabelecimento de cumplicidades com os poderes económicos que vampirizam a vida dos partidos, como referiu o Dr. Paulo Morais na última campanha eleitoral. Em particular com os sectores associados ao imobiliário. Esta inexistência de um determinado tipo de aptidões e a existência de outras contribui para a dissolução da especificidade partidária. O que será hoje o projecto autárquico do partido A,B ou C, e não excluo o PCP ou o BE.
A debilidade dessas estruturas locais faz com que a sua direcção política seja muitas vezes pré-determinada pelas opções dos presidentes das federações contrariamente ao que em tese se passaria com aqueles a emanarem das escolhas dos organismos de base. São estes homens e mulheres, que em regra, no PSD e no PS, passam pelos Governos Civis, que põem e dispõem na vida dos partidos ao nível local e que passados alguns meses de ascenderem ao poder criam a base para aí se perpetuarem.
Existem soluções para estas situações que como referi não resultam de uma fatalidade mas de escolhas. Defendo há anos que uma intervenção deve passar em primeiro lugar pelo nível local. Limitando os mandatos, simplificando as candidaturas independentes, pondo fim aos executivos pluripartidários - separando poder executivo de poder legislativo - reforçando os poderes e os meios das Assembleias Municipais como órgãos de efectivo controle democrático da função executiva .
O problema é que a classe política, que não se regenera de per si, não está para aí virada. Ninguém abdica dos seus privilégios, nem das benesses que desde sempre elegeu como o seu objectivo principal e que justificam os sacrifícios que fez. Talvez por isso só em 2013, na melhor das hipóteses, a limitação de mandatos será efectiva.
Até lá vai continuar a crescer a descrença nos partidos e nos políticos, campo fértil para o florescimento de todo o tipo de populismos. E vai continuar a degradar-se a qualidade da intervenção partidária pelo que as escolhas que colectivamente teremos que fazer serão muito provavelmente más escolhas e escolhas, irremediavelmente, fora do tempo.
sexta-feira, janeiro 20, 2006
A questão do Tempo e os Planos de Pormenor - I
Uma versão integral do texto, que foi comprimido para poder ser publicado num jornal com as características do Público.
A questão do tempo e os Planos de Pormenor
Muito recentemente os Planos de Pormenor foram notícia com base em referências de diversos protagonistas com responsabilidade nas áreas do urbanismo e da arquitectura.
Alguns manifestaram estupefacção perante o facto de os Planos de Pormenor terem registado tão pouca adesão por parte dos decisores políticos com responsabilidade nesta matéria que, como se sabe, são os autarcas. Outros, mais recentemente – caso da arquitecta Helena Roseta, no Público de 21 de Outubro de 2005 – vieram reclamar menos tempo de aprovação dos PP´s para que não se transformem em instrumentos de perda de capacidade competitiva dos investidores.
A questão da necessidade de agilizar os procedimentos burocráticos que levam a que os Planos – e não só os de Pormenor – demorem tantos anos a serem elaborados é um ideia recorrente e, por si só, susceptível de gerar um alargado consenso. No entanto, considerada isoladamente, pode ser uma ideia perigosa e simplista.
Por um lado, porque reforça o ponto de vista de que a ineficácia do Planeamento de Pormenor se deve, sobretudo – para não dizer exclusivamente – à morosidade na sua elaboração. Para os defensores desta tese, o sistema de Planeamento que temos seria óptimo não fosse esse pequeno senão da elaboração dos Planos ser muito demorada. Note-se que, no conjunto das críticas que se formulam, nunca são abordadas as questões dos conteúdos e da qualidade dos Planos.
Por outro lado, porque esta insistência na questão temporal estimula a difusão de uma ideia perversa que é a de que um planeamento light é sempre um melhor planeamento, uma vez que antecipa a chegada à fase do projecto de urbanização e do projecto de arquitectura. Trata-se de uma ideia difundida por aqueles que desvalorizam o urbanismo, promovendo a confusão entre urbanismo e arquitectura e atribuindo a má qualidade das nossas cidades e o desordenamento do território a um défice da intervenção dos arquitectos.
Se persistíssemos no erro de limitar a discussão à questão temporal haveria, mesmo assim, algumas considerações a fazer. Em primeiro lugar o tempo de elaboração dos Planos não é um tempo uno. Há o tempo excessivo, e em larga medida inútil, dos burocratas, consumido na circulação de pareceres, na falta de solidariedade, e mesmo na desconfiança, entre os diversos níveis da Administração Pública.
O tempo inútil do urbanismo burocrático, incapaz de admitir as especificidades do processo de produção urbana, cioso de uma interpretação jurídica eminentemente repressiva. Este é um tempo que urge reduzir significativamente, já que não se pode eliminá-lo.
Há, por outro lado, o tempo escasso para o trabalho de planeamento, que deve ser alargado e que passa pela revalorização do papel, da responsabilidade e da independência técnica da intervenção dos urbanistas. Um tempo que importa qualificar, recuperando as fronteiras éticas entre o público e o privado, entre o plano e o projecto. O Planeamento em Portugal e na generalidade dos países europeus é uma competência e uma responsabilidade pública. Nesse sentido exige-se ao urbanista que tenha a independência do legislador, sendo a sua lealdade dirigida, acima de tudo, ao interesse público. Com o advento do urbanismo de produtos, são cada vez mais os casos em que os destinatários da encomenda dos grandes promotores imobiliários realizam, como complemento das grandes urbanizações que projectam, Planos que visam “costurar” as diferentes intervenções. Uma paródia do urbanismo.
E há, sobretudo, o tempo escasso da discussão pública, esse instituto eminentemente democrático, que actualmente é verdadeiramente residual e que urge aumentar significativamente. Repare-se na contradição existente quando se fala em excesso de tempo para a aprovação de um Plano de Pormenor e a Lei determina um máximo de 22 dias – Artº 77º-6º do D-Lei310/2003 – para o período de discussão pública. Alargar o período de discussão pública, impondo exigências qualitativas aos urbanistas, impondo, nomeadamente, legibilidade e clareza às propostas de desenho urbano que formulam.
Claro que importa tornar essa discussão útil, impedindo a pouca vergonha da eliminação da sua eficácia através da desvalorização sistemática das reclamações dos cidadãos, uma prática recorrente entre os autarcas, apoiada, por questões alimentares, por tantos e tantos técnicos ciosos dos seus contratos.
Se fosse esta a questão principal que se coloca hoje ao nosso Sistema de Planeamento Urbanístico, eu diria que, mais do que diminuir o tempo necessário para elaborar os Planos, importa requalificá-lo de uma forma mais inteligente e mais democrática, incentivando a participação daqueles a quem o planeamento se destina em última análise: os cidadãos.
Mas, para além destas questões eminentemente temporais será que existem outras razões para que o Planeamento de Pormenor seja ineficaz? Será que a ineficácia se pode medir pelo facto de ele afastar os investidores da intervenção nas nossas cidades? Ou devemos eleger outras razões como determinantes da sua constatada ineficácia?
O declínio do Planeamento de Pormenor como forma de garantir a qualificação do desenvolvimento urbano não ocorreu unicamente em Portugal. Em toda a Europa se travou essa discussão tendo-se estabelecido uma relação entre o declínio do planeamento de pormenor e a perda de influência do espaço público nas cidades. Há um conjunto de factores identificados como determinantes desse declínio, destacando-se a submissão dos objectivos do planeamento às dinâmicas da iniciativa privada e, em particular, às dinâmicas do sector imobiliário entre as mais relevantes. Em Portugal existem diversos aspectos que concorrem para que o Planeamento de Pormenor seja pouco utilizado e, quando utilizado, seja ineficaz. Vamos tentar sistematizar alguns dos aspectos mais relevantes que concorrem para a actual situação e avançar algumas ideias sobre o que fazer para a alterar.
Do ponto de vista dos autarcas, o Planeamento Urbanístico foi inicialmente entendido como uma formalidade que era necessário satisfazer para viabilizar o acesso a fundos comunitários. Desde esses tempos verificou-se alguma evolução mas a opção clara que domina não vai no sentido de utilizar o urbanismo para qualificar o desenvolvimento urbano, para contribuir para a preservação dos recursos naturais e para garantir aos cidadãos e às empresas condições optimizadas de acesso ao território. A opção vai no sentido de entender e utilizar o urbanismo como um conjunto de ferramentas potenciadoras da valorização da propriedade fundiária. Acontece que, deste ponto de vista, os PP´s são uma perfeita inutilidade, já que a nossa legislação permite que os Planos Directores Municipais definam índices urbanísticos e sejam vinculativos dos particulares. Com esse instrumental estabelecido nos PDM´s os autarcas e os investidores têm sido capazes de se entenderem, como mostra o passado recente. Cada um maximiza aquilo que quer do “urbanismo”: no caso dos autarcas, as receitas associadas ao imobiliário e, no caso dos investidores, índices de construção e mais valias simples tão elevados quanto possível.
A prova do que aqui escrevo é que nos municípios nos quais nunca se elaborou um Plano de Pormenor ou um Plano de Urbanização o “desenvolvimento urbano” não parou. Antes pelo contrário.
É por isso que uma primeira solução passa por estabelecer no Sistema de Planeamento uma clara separação entre os Planos de Afectação do Solo a Classes de Uso e os Planos de Utilização do Solo. No primeiro grupo ficariam os Planos Directores Municipais, que não estabeleceriam índices urbanísticos e que unicamente vinculariam a Administração Pública. No segundo grupo ficariam os Planos de Pormenor, que seriam vinculativos dos particulares, e nos quais seria definida a forma urbana a que as iniciativas dos promotores se teriam forçosamente que submeter. Esta alteração pressupõe que os municípios sejam proibidos de emitir licenças de construção, ou alvarás de loteamentos, sem a prévia existência de Planos de Pormenor devidamente aprovados.
Com esta mudança alterava-se de forma drástica, a favor do Planeamento de Pormenor, a relação de forças existente no nosso Sistema de Planeamento Urbanístico. Mas resolver-se-iam todos os problemas? É claro que não.
Actualmente um Plano de Pormenor aprovado pode não ter depois qualquer correspondência em termos de desenvolvimento urbano. Existem em alguns concelhos Planos de Pormenor aprovados, com milhares de fogos autorizados, nas quais os promotores optaram por não tomar qualquer iniciativa. Este facto, quase nunca referido, justifica um outro olhar sobre as questões temporais. O carácter imperativo ou não do processo de urbanização determina a rapidez com que são disponibilizados os terrenos em função da vontade colectiva expressa nos Planos. Na nossa situação existe uma diferença fundamental entre oferta potencial e oferta real de solos. A retenção de terrenos é um comportamento especulativo “natural” dos proprietários, que com a expectativa de verem o valor dos seus terrenos aumentar no médio ou no longo prazo, optam por esperar para poderem maximizar as suas mais-valias. A existência deste tipo de comportamento de natureza eminentemente especulativa deveria originar pela parte da Administração uma resposta capaz de determinar o carácter imperativo da urbanização. A aprovação de um Plano de Pormenor, pela autoridade municipal, tem que equivaler a uma decisão de início da urbanização, com a repartição dos custos dos equipamentos e infraestruturas e entrada em obra imediata. Esta decisão concretiza-se pela cobrança, no prazo de alguns meses, após a aprovação do PP, aos proprietários abrangidos da sua parte nos custos da urbanização, incluindo infraestruturas e equipamentos. Naturalmente, quem suporta estes encargos não tem qualquer vantagem em manter uma atitude expectante, sendo estimulado a colocar os seus terrenos no mercado. Quem não pretende associar-se ao desenvolvimento tem o direito a ceder ao município os seus terrenos pelo valor do uso existente, uma situação que o actual Código das Expropriações inviabiliza, pois integra no valor do terreno objecto de expropriação as mais-valias simples resultantes das decisões da Administração.
Há ainda a magna questão dos conteúdos. Os PP´s devem valorizar a questão do desenho urbano e, sobretudo, a importância do espaço público para o desenvolvimento das cidades. Devem libertar-se do espartilho do urbanismo funcionalista que entende o planeamento, e em particular o planeamento de pormenor, como o somatório de um conjunto de intervenções especializadas – as da rodovia, a dos espaços verdes, as da edificação, etc. Só é possível alterar esta situação pela valorização da forma urbana e do espaço público entendido como o lugar da cidadania e não como um espaço residual ou sobrante das restantes intervenções. Um espaço público democrático, interclassista, e não como acontece com o urbanismo de produtos que o privatiza enclausurando-o, impondo-lhe a limitação do acesso, tornando-o um elemento de segregação das populações de menores recursos. Um urbanismo que tende a reduzir os cidadãos à condição de consumidores e a cidade a um mero produto imobiliário e cuja apologia é feita por aqueles que se limitam a garantir o seu lugar nos itinerários produtivos da grande promoção imobiliária.
O sistema de Planeamento não pode continuar a ignorar as questões do imobiliário e, a ela associadas, as questões do acesso à habitação, ou a ignorar as mais-valias associadas às mudanças de uso do solo e a defesa das procuras agrícolas e florestais face à procura urbana.
Se grande parte destas questões devem ser tratadas sobretudo nos PDM´s e nos Planos de Urbanização, é nos PP´s que devem ser concretizados, através das propostas de desenho urbano, os objectivos da política de habitação definidas nos Planos Locais de Habitação, não previstos na nossa legislação. Impondo a combinação dos usos, dando resposta física às necessidades das diferentes procuras, evitando a segregação espacial das populações de menores recursos, pondo termo à ditadura do monoproduto imobiliário dirigido para os segmentos de maior poder aquisitivo.
Sem corrigirmos estas omissões, mesmo que possamos reduzir em muito o tempo de elaboração do planeamento, e ainda que mudemos os nomes aos Planos, o que estamos afinal a reduzir é o tempo que nos separa de situações como aquelas que se viveram ultimamente em França e cujas diferentes análises puseram em evidência a incompreensão das dimensões especificamente urbanas, da insegurança associada à “guetização” das populações e ao crescimento urbano submetido aos ditames e às dinâmicas do imobiliário.
A questão do tempo e os Planos de Pormenor
Muito recentemente os Planos de Pormenor foram notícia com base em referências de diversos protagonistas com responsabilidade nas áreas do urbanismo e da arquitectura.
Alguns manifestaram estupefacção perante o facto de os Planos de Pormenor terem registado tão pouca adesão por parte dos decisores políticos com responsabilidade nesta matéria que, como se sabe, são os autarcas. Outros, mais recentemente – caso da arquitecta Helena Roseta, no Público de 21 de Outubro de 2005 – vieram reclamar menos tempo de aprovação dos PP´s para que não se transformem em instrumentos de perda de capacidade competitiva dos investidores.
A questão da necessidade de agilizar os procedimentos burocráticos que levam a que os Planos – e não só os de Pormenor – demorem tantos anos a serem elaborados é um ideia recorrente e, por si só, susceptível de gerar um alargado consenso. No entanto, considerada isoladamente, pode ser uma ideia perigosa e simplista.
Por um lado, porque reforça o ponto de vista de que a ineficácia do Planeamento de Pormenor se deve, sobretudo – para não dizer exclusivamente – à morosidade na sua elaboração. Para os defensores desta tese, o sistema de Planeamento que temos seria óptimo não fosse esse pequeno senão da elaboração dos Planos ser muito demorada. Note-se que, no conjunto das críticas que se formulam, nunca são abordadas as questões dos conteúdos e da qualidade dos Planos.
Por outro lado, porque esta insistência na questão temporal estimula a difusão de uma ideia perversa que é a de que um planeamento light é sempre um melhor planeamento, uma vez que antecipa a chegada à fase do projecto de urbanização e do projecto de arquitectura. Trata-se de uma ideia difundida por aqueles que desvalorizam o urbanismo, promovendo a confusão entre urbanismo e arquitectura e atribuindo a má qualidade das nossas cidades e o desordenamento do território a um défice da intervenção dos arquitectos.
Se persistíssemos no erro de limitar a discussão à questão temporal haveria, mesmo assim, algumas considerações a fazer. Em primeiro lugar o tempo de elaboração dos Planos não é um tempo uno. Há o tempo excessivo, e em larga medida inútil, dos burocratas, consumido na circulação de pareceres, na falta de solidariedade, e mesmo na desconfiança, entre os diversos níveis da Administração Pública.
O tempo inútil do urbanismo burocrático, incapaz de admitir as especificidades do processo de produção urbana, cioso de uma interpretação jurídica eminentemente repressiva. Este é um tempo que urge reduzir significativamente, já que não se pode eliminá-lo.
Há, por outro lado, o tempo escasso para o trabalho de planeamento, que deve ser alargado e que passa pela revalorização do papel, da responsabilidade e da independência técnica da intervenção dos urbanistas. Um tempo que importa qualificar, recuperando as fronteiras éticas entre o público e o privado, entre o plano e o projecto. O Planeamento em Portugal e na generalidade dos países europeus é uma competência e uma responsabilidade pública. Nesse sentido exige-se ao urbanista que tenha a independência do legislador, sendo a sua lealdade dirigida, acima de tudo, ao interesse público. Com o advento do urbanismo de produtos, são cada vez mais os casos em que os destinatários da encomenda dos grandes promotores imobiliários realizam, como complemento das grandes urbanizações que projectam, Planos que visam “costurar” as diferentes intervenções. Uma paródia do urbanismo.
E há, sobretudo, o tempo escasso da discussão pública, esse instituto eminentemente democrático, que actualmente é verdadeiramente residual e que urge aumentar significativamente. Repare-se na contradição existente quando se fala em excesso de tempo para a aprovação de um Plano de Pormenor e a Lei determina um máximo de 22 dias – Artº 77º-6º do D-Lei310/2003 – para o período de discussão pública. Alargar o período de discussão pública, impondo exigências qualitativas aos urbanistas, impondo, nomeadamente, legibilidade e clareza às propostas de desenho urbano que formulam.
Claro que importa tornar essa discussão útil, impedindo a pouca vergonha da eliminação da sua eficácia através da desvalorização sistemática das reclamações dos cidadãos, uma prática recorrente entre os autarcas, apoiada, por questões alimentares, por tantos e tantos técnicos ciosos dos seus contratos.
Se fosse esta a questão principal que se coloca hoje ao nosso Sistema de Planeamento Urbanístico, eu diria que, mais do que diminuir o tempo necessário para elaborar os Planos, importa requalificá-lo de uma forma mais inteligente e mais democrática, incentivando a participação daqueles a quem o planeamento se destina em última análise: os cidadãos.
Mas, para além destas questões eminentemente temporais será que existem outras razões para que o Planeamento de Pormenor seja ineficaz? Será que a ineficácia se pode medir pelo facto de ele afastar os investidores da intervenção nas nossas cidades? Ou devemos eleger outras razões como determinantes da sua constatada ineficácia?
O declínio do Planeamento de Pormenor como forma de garantir a qualificação do desenvolvimento urbano não ocorreu unicamente em Portugal. Em toda a Europa se travou essa discussão tendo-se estabelecido uma relação entre o declínio do planeamento de pormenor e a perda de influência do espaço público nas cidades. Há um conjunto de factores identificados como determinantes desse declínio, destacando-se a submissão dos objectivos do planeamento às dinâmicas da iniciativa privada e, em particular, às dinâmicas do sector imobiliário entre as mais relevantes. Em Portugal existem diversos aspectos que concorrem para que o Planeamento de Pormenor seja pouco utilizado e, quando utilizado, seja ineficaz. Vamos tentar sistematizar alguns dos aspectos mais relevantes que concorrem para a actual situação e avançar algumas ideias sobre o que fazer para a alterar.
Do ponto de vista dos autarcas, o Planeamento Urbanístico foi inicialmente entendido como uma formalidade que era necessário satisfazer para viabilizar o acesso a fundos comunitários. Desde esses tempos verificou-se alguma evolução mas a opção clara que domina não vai no sentido de utilizar o urbanismo para qualificar o desenvolvimento urbano, para contribuir para a preservação dos recursos naturais e para garantir aos cidadãos e às empresas condições optimizadas de acesso ao território. A opção vai no sentido de entender e utilizar o urbanismo como um conjunto de ferramentas potenciadoras da valorização da propriedade fundiária. Acontece que, deste ponto de vista, os PP´s são uma perfeita inutilidade, já que a nossa legislação permite que os Planos Directores Municipais definam índices urbanísticos e sejam vinculativos dos particulares. Com esse instrumental estabelecido nos PDM´s os autarcas e os investidores têm sido capazes de se entenderem, como mostra o passado recente. Cada um maximiza aquilo que quer do “urbanismo”: no caso dos autarcas, as receitas associadas ao imobiliário e, no caso dos investidores, índices de construção e mais valias simples tão elevados quanto possível.
A prova do que aqui escrevo é que nos municípios nos quais nunca se elaborou um Plano de Pormenor ou um Plano de Urbanização o “desenvolvimento urbano” não parou. Antes pelo contrário.
É por isso que uma primeira solução passa por estabelecer no Sistema de Planeamento uma clara separação entre os Planos de Afectação do Solo a Classes de Uso e os Planos de Utilização do Solo. No primeiro grupo ficariam os Planos Directores Municipais, que não estabeleceriam índices urbanísticos e que unicamente vinculariam a Administração Pública. No segundo grupo ficariam os Planos de Pormenor, que seriam vinculativos dos particulares, e nos quais seria definida a forma urbana a que as iniciativas dos promotores se teriam forçosamente que submeter. Esta alteração pressupõe que os municípios sejam proibidos de emitir licenças de construção, ou alvarás de loteamentos, sem a prévia existência de Planos de Pormenor devidamente aprovados.
Com esta mudança alterava-se de forma drástica, a favor do Planeamento de Pormenor, a relação de forças existente no nosso Sistema de Planeamento Urbanístico. Mas resolver-se-iam todos os problemas? É claro que não.
Actualmente um Plano de Pormenor aprovado pode não ter depois qualquer correspondência em termos de desenvolvimento urbano. Existem em alguns concelhos Planos de Pormenor aprovados, com milhares de fogos autorizados, nas quais os promotores optaram por não tomar qualquer iniciativa. Este facto, quase nunca referido, justifica um outro olhar sobre as questões temporais. O carácter imperativo ou não do processo de urbanização determina a rapidez com que são disponibilizados os terrenos em função da vontade colectiva expressa nos Planos. Na nossa situação existe uma diferença fundamental entre oferta potencial e oferta real de solos. A retenção de terrenos é um comportamento especulativo “natural” dos proprietários, que com a expectativa de verem o valor dos seus terrenos aumentar no médio ou no longo prazo, optam por esperar para poderem maximizar as suas mais-valias. A existência deste tipo de comportamento de natureza eminentemente especulativa deveria originar pela parte da Administração uma resposta capaz de determinar o carácter imperativo da urbanização. A aprovação de um Plano de Pormenor, pela autoridade municipal, tem que equivaler a uma decisão de início da urbanização, com a repartição dos custos dos equipamentos e infraestruturas e entrada em obra imediata. Esta decisão concretiza-se pela cobrança, no prazo de alguns meses, após a aprovação do PP, aos proprietários abrangidos da sua parte nos custos da urbanização, incluindo infraestruturas e equipamentos. Naturalmente, quem suporta estes encargos não tem qualquer vantagem em manter uma atitude expectante, sendo estimulado a colocar os seus terrenos no mercado. Quem não pretende associar-se ao desenvolvimento tem o direito a ceder ao município os seus terrenos pelo valor do uso existente, uma situação que o actual Código das Expropriações inviabiliza, pois integra no valor do terreno objecto de expropriação as mais-valias simples resultantes das decisões da Administração.
Há ainda a magna questão dos conteúdos. Os PP´s devem valorizar a questão do desenho urbano e, sobretudo, a importância do espaço público para o desenvolvimento das cidades. Devem libertar-se do espartilho do urbanismo funcionalista que entende o planeamento, e em particular o planeamento de pormenor, como o somatório de um conjunto de intervenções especializadas – as da rodovia, a dos espaços verdes, as da edificação, etc. Só é possível alterar esta situação pela valorização da forma urbana e do espaço público entendido como o lugar da cidadania e não como um espaço residual ou sobrante das restantes intervenções. Um espaço público democrático, interclassista, e não como acontece com o urbanismo de produtos que o privatiza enclausurando-o, impondo-lhe a limitação do acesso, tornando-o um elemento de segregação das populações de menores recursos. Um urbanismo que tende a reduzir os cidadãos à condição de consumidores e a cidade a um mero produto imobiliário e cuja apologia é feita por aqueles que se limitam a garantir o seu lugar nos itinerários produtivos da grande promoção imobiliária.
O sistema de Planeamento não pode continuar a ignorar as questões do imobiliário e, a ela associadas, as questões do acesso à habitação, ou a ignorar as mais-valias associadas às mudanças de uso do solo e a defesa das procuras agrícolas e florestais face à procura urbana.
Se grande parte destas questões devem ser tratadas sobretudo nos PDM´s e nos Planos de Urbanização, é nos PP´s que devem ser concretizados, através das propostas de desenho urbano, os objectivos da política de habitação definidas nos Planos Locais de Habitação, não previstos na nossa legislação. Impondo a combinação dos usos, dando resposta física às necessidades das diferentes procuras, evitando a segregação espacial das populações de menores recursos, pondo termo à ditadura do monoproduto imobiliário dirigido para os segmentos de maior poder aquisitivo.
Sem corrigirmos estas omissões, mesmo que possamos reduzir em muito o tempo de elaboração do planeamento, e ainda que mudemos os nomes aos Planos, o que estamos afinal a reduzir é o tempo que nos separa de situações como aquelas que se viveram ultimamente em França e cujas diferentes análises puseram em evidência a incompreensão das dimensões especificamente urbanas, da insegurança associada à “guetização” das populações e ao crescimento urbano submetido aos ditames e às dinâmicas do imobiliário.
A questão do Tempo e os Planos de Pormenor
Artigo de opinião publicado no suplemento local do jornal Público do passado domingo.
A questão do tempo e os Planos de Pormenor
Muito recentemente os Planos de Pormenor foram notícia com base em referências de diversos protagonistas com responsabilidade nas áreas do urbanismo e da arquitectura.
Alguns manifestaram estupefacção perante o facto de os Planos de Pormenor terem registado tão pouca adesão enquanto outros, mais recentemente – caso da arquitecta Helena Roseta, no Público de 21 de Outubro de 2005 – vieram reclamar menos tempo de aprovação dos PP´s para que não se transformem em instrumentos de perda de capacidade competitiva dos investidores.
A questão da necessidade de agilizar os procedimentos burocráticos que levam a que os Planos – e não só os de Pormenor – demorem tantos anos a serem elaborados é um ideia recorrente e, por si só, susceptível de gerar um alargado consenso. No entanto, considerada isoladamente, pode ser uma ideia perigosa e simplista. Por um lado, porque reforça o ponto de vista de que a ineficácia do Planeamento de Pormenor se deve, sobretudo – para não dizer exclusivamente – à morosidade na sua elaboração. Note-se que, no conjunto das críticas que se formulam, nunca são abordadas as questões dos conteúdos e da qualidade dos Planos. Por outro lado, porque esta insistência na questão temporal estimula a difusão de uma ideia perversa que é a de que um planeamento light é sempre um melhor planeamento, uma vez que antecipa a chegada à fase do projecto de urbanização e do projecto de arquitectura.
Se persistíssemos no erro de limitar a discussão à questão temporal haveria, mesmo assim, algumas considerações a fazer. Em primeiro lugar o tempo de elaboração dos Planos não é um tempo uno. Há o tempo excessivo, e em larga medida inútil, dos burocratas, consumido na circulação de pareceres, na falta de solidariedade, e mesmo na desconfiança, entre os diversos níveis da Administração Pública.
Há, por outro lado, o tempo escasso para o trabalho de planeamento, que deve ser alargado o que passa pela revalorização do papel, da responsabilidade e da independência técnica da intervenção dos urbanistas, recuperando as fronteiras éticas entre o público e o privado, entre o plano e o projecto. Com o advento do urbanismo de produtos, são cada vez mais os casos em que os destinatários da encomenda dos grandes promotores imobiliários realizam, como complemento das grandes urbanizações que projectam, Planos que visam “costurar” as diferentes intervenções. Uma paródia do urbanismo.
E há, sobretudo, o tempo escasso da discussão pública, esse instituto eminentemente democrático, que actualmente é verdadeiramente residual e que urge aumentar significativamente. Repare-se na contradição existente quando se fala em excesso de tempo para a aprovação de um Plano de Pormenor e a Lei determina um máximo de 22 dias – Artº 77º-6º do D-Lei310/2003 – para o período de discussão pública.
Por um novo Sistema de Planeamento
Mas, para além destas questões eminentemente temporais será que existem outras razões para que a perda de eficácia do Planeamento ?
Em toda a Europa travou-se uma discussão que permitiu estabelecer uma relação entre o declínio do Planeamento e a perda de qualificação do desenvolvimento urbano e em particular uma relação entre o declínio do planeamento de pormenor e a perda de influência do espaço público nas cidades. Há um conjunto de factores identificados como determinantes desse declínio, destacando-se a submissão dos objectivos do planeamento às dinâmicas da iniciativa privada e, em particular, às dinâmicas do sector imobiliário entre as mais relevantes.
Vamos tentar sistematizar alguns dos aspectos mais relevantes que concorrem para que em Portugal o Planeamento de Pormenor seja pouco utilizado e, quando utilizado, seja ineficaz e avançar algumas ideias sobre o que fazer para alterar a actual situação.
Do ponto de vista dos autarcas, o Planeamento Urbanístico foi inicialmente entendido como uma formalidade que era necessário satisfazer para viabilizar o acesso a fundos comunitários. Desde esses tempos verificou-se alguma evolução mas a opção clara que domina não vai no sentido de utilizar o urbanismo para qualificar o desenvolvimento urbano, para contribuir para a preservação dos recursos naturais e para garantir aos cidadãos e às empresas condições optimizadas de acesso ao território. A opção vai no sentido de entender e utilizar o urbanismo como um conjunto de ferramentas potenciadoras da valorização da propriedade fundiária. Acontece que, deste ponto de vista, os Planos de Pormenor são uma perfeita inutilidade, já que a nossa legislação permite que os Planos Directores Municipais definam índices urbanísticos e sejam vinculativos dos particulares.
Com esse instrumental estabelecido nos PDM´s os autarcas e os investidores têm sido capazes de se entenderem, como mostra o passado recente. Cada um maximiza aquilo que quer do “urbanismo”: no caso dos autarcas, as receitas associadas ao imobiliário –embora a prazo a operação se revele largamente deficitária - e, no caso dos investidores, índices de construção e mais valias simples tão elevados quanto possível.
É por isso que uma primeira solução passa por estabelecer no Sistema de Planeamento uma clara separação entre os Planos de Afectação do Solo a Classes de Uso e os Planos de Utilização do Solo. No primeiro grupo ficariam os Planos Directores Municipais, que não estabeleceriam índices urbanísticos e que unicamente vinculariam a Administração Pública. No segundo grupo ficariam os Planos de Pormenor, que seriam vinculativos dos particulares, e nos quais seria definida a forma urbana a que as iniciativas dos promotores se teriam forçosamente que submeter. Esta alteração pressupõe que os municípios sejam proibidos de emitir licenças de construção, ou alvarás de loteamentos, sem a prévia existência de Planos de Pormenor devidamente aprovados. Planos de Pormenor elaborados pela Administração e não pelos particulares que disponham de capacidade financeira para o fazer, uma nova forma de discriminação dos cidadãos de menores recursos que se foi instalando e de que ninguém fala.
Com esta mudança alterava-se de forma drástica, a favor do Planeamento de Pormenor, a relação de forças existente no nosso Sistema de Planeamento Urbanístico. Mas resolver-se-iam todos os problemas? É claro que não.
O Problema da eficácia dos Planos
Actualmente um Plano de Pormenor aprovado pode não ter depois qualquer correspondência em termos de desenvolvimento urbano. Existem em alguns concelhos Planos de Pormenor aprovados, com milhares de fogos autorizados, nas quais os promotores optaram por não tomar qualquer iniciativa. Este facto, quase nunca referido, justifica por si só um outro olhar sobre as questões temporais. A discussão sobre o carácter imperativo ou não que o processo de urbanização deve ter em função da vontade colectiva expressa nos Planos. Em Portugal apesar do discurso sistemático pró-des-regulamentação, é um facto que são os privados que ditam, desde 1965, o tempo e o modo do processo de desenvolvimento urbano.
Há ainda a magna questão dos conteúdos. Os PP´s devem valorizar a questão do desenho urbano e, sobretudo, a importância do espaço público para o desenvolvimento das cidades. Devem libertar-se do espartilho do urbanismo funcionalista que entende o planeamento, e em particular o planeamento de pormenor, como o somatório de um conjunto de intervenções especializadas – as da rodovia, a dos espaços verdes, as da edificação, etc. Um urbanismo que tende a reduzir os cidadãos à condição de consumidores e a cidade a um mero produto imobiliário e cuja apologia é feita por aqueles que se limitam a garantir o seu lugar nos itinerários produtivos da grande promoção imobiliária.
Só é possível alterar esta situação pela valorização da forma urbana e do espaço público entendido como o lugar da cidadania e não como um espaço residual ou sobrante das restantes intervenções. Um espaço público democrático, interclassista, e não como acontece com o urbanismo de produtos que o privatiza enclausurando-o, impondo-lhe a limitação do acesso, tornando-o um elemento de segregação das populações de menores recursos.
Sem corrigirmos estas omissões, mesmo que possamos reduzir em muito o tempo de elaboração do planeamento, e ainda que mudemos os nomes aos Planos, o que estamos afinal a reduzir é o tempo que nos separa de situações como aquelas que se viveram ultimamente em França e cujas diferentes análises puseram em evidência a incompreensão das dimensões especificamente urbanas, da insegurança associada à “guetização” - de pobres e de ricos - das populações e ao crescimento urbano submetido aos ditames e às dinâmicas do imobiliário.
Muito recentemente os Planos de Pormenor foram notícia com base em referências de diversos protagonistas com responsabilidade nas áreas do urbanismo e da arquitectura.
Alguns manifestaram estupefacção perante o facto de os Planos de Pormenor terem registado tão pouca adesão enquanto outros, mais recentemente – caso da arquitecta Helena Roseta, no Público de 21 de Outubro de 2005 – vieram reclamar menos tempo de aprovação dos PP´s para que não se transformem em instrumentos de perda de capacidade competitiva dos investidores.
A questão da necessidade de agilizar os procedimentos burocráticos que levam a que os Planos – e não só os de Pormenor – demorem tantos anos a serem elaborados é um ideia recorrente e, por si só, susceptível de gerar um alargado consenso. No entanto, considerada isoladamente, pode ser uma ideia perigosa e simplista. Por um lado, porque reforça o ponto de vista de que a ineficácia do Planeamento de Pormenor se deve, sobretudo – para não dizer exclusivamente – à morosidade na sua elaboração. Note-se que, no conjunto das críticas que se formulam, nunca são abordadas as questões dos conteúdos e da qualidade dos Planos. Por outro lado, porque esta insistência na questão temporal estimula a difusão de uma ideia perversa que é a de que um planeamento light é sempre um melhor planeamento, uma vez que antecipa a chegada à fase do projecto de urbanização e do projecto de arquitectura.
Se persistíssemos no erro de limitar a discussão à questão temporal haveria, mesmo assim, algumas considerações a fazer. Em primeiro lugar o tempo de elaboração dos Planos não é um tempo uno. Há o tempo excessivo, e em larga medida inútil, dos burocratas, consumido na circulação de pareceres, na falta de solidariedade, e mesmo na desconfiança, entre os diversos níveis da Administração Pública.
Há, por outro lado, o tempo escasso para o trabalho de planeamento, que deve ser alargado o que passa pela revalorização do papel, da responsabilidade e da independência técnica da intervenção dos urbanistas, recuperando as fronteiras éticas entre o público e o privado, entre o plano e o projecto. Com o advento do urbanismo de produtos, são cada vez mais os casos em que os destinatários da encomenda dos grandes promotores imobiliários realizam, como complemento das grandes urbanizações que projectam, Planos que visam “costurar” as diferentes intervenções. Uma paródia do urbanismo.
E há, sobretudo, o tempo escasso da discussão pública, esse instituto eminentemente democrático, que actualmente é verdadeiramente residual e que urge aumentar significativamente. Repare-se na contradição existente quando se fala em excesso de tempo para a aprovação de um Plano de Pormenor e a Lei determina um máximo de 22 dias – Artº 77º-6º do D-Lei310/2003 – para o período de discussão pública.
Por um novo Sistema de Planeamento
Mas, para além destas questões eminentemente temporais será que existem outras razões para que a perda de eficácia do Planeamento ?
Em toda a Europa travou-se uma discussão que permitiu estabelecer uma relação entre o declínio do Planeamento e a perda de qualificação do desenvolvimento urbano e em particular uma relação entre o declínio do planeamento de pormenor e a perda de influência do espaço público nas cidades. Há um conjunto de factores identificados como determinantes desse declínio, destacando-se a submissão dos objectivos do planeamento às dinâmicas da iniciativa privada e, em particular, às dinâmicas do sector imobiliário entre as mais relevantes.
Vamos tentar sistematizar alguns dos aspectos mais relevantes que concorrem para que em Portugal o Planeamento de Pormenor seja pouco utilizado e, quando utilizado, seja ineficaz e avançar algumas ideias sobre o que fazer para alterar a actual situação.
Do ponto de vista dos autarcas, o Planeamento Urbanístico foi inicialmente entendido como uma formalidade que era necessário satisfazer para viabilizar o acesso a fundos comunitários. Desde esses tempos verificou-se alguma evolução mas a opção clara que domina não vai no sentido de utilizar o urbanismo para qualificar o desenvolvimento urbano, para contribuir para a preservação dos recursos naturais e para garantir aos cidadãos e às empresas condições optimizadas de acesso ao território. A opção vai no sentido de entender e utilizar o urbanismo como um conjunto de ferramentas potenciadoras da valorização da propriedade fundiária. Acontece que, deste ponto de vista, os Planos de Pormenor são uma perfeita inutilidade, já que a nossa legislação permite que os Planos Directores Municipais definam índices urbanísticos e sejam vinculativos dos particulares.
Com esse instrumental estabelecido nos PDM´s os autarcas e os investidores têm sido capazes de se entenderem, como mostra o passado recente. Cada um maximiza aquilo que quer do “urbanismo”: no caso dos autarcas, as receitas associadas ao imobiliário –embora a prazo a operação se revele largamente deficitária - e, no caso dos investidores, índices de construção e mais valias simples tão elevados quanto possível.
É por isso que uma primeira solução passa por estabelecer no Sistema de Planeamento uma clara separação entre os Planos de Afectação do Solo a Classes de Uso e os Planos de Utilização do Solo. No primeiro grupo ficariam os Planos Directores Municipais, que não estabeleceriam índices urbanísticos e que unicamente vinculariam a Administração Pública. No segundo grupo ficariam os Planos de Pormenor, que seriam vinculativos dos particulares, e nos quais seria definida a forma urbana a que as iniciativas dos promotores se teriam forçosamente que submeter. Esta alteração pressupõe que os municípios sejam proibidos de emitir licenças de construção, ou alvarás de loteamentos, sem a prévia existência de Planos de Pormenor devidamente aprovados. Planos de Pormenor elaborados pela Administração e não pelos particulares que disponham de capacidade financeira para o fazer, uma nova forma de discriminação dos cidadãos de menores recursos que se foi instalando e de que ninguém fala.
Com esta mudança alterava-se de forma drástica, a favor do Planeamento de Pormenor, a relação de forças existente no nosso Sistema de Planeamento Urbanístico. Mas resolver-se-iam todos os problemas? É claro que não.
O Problema da eficácia dos Planos
Actualmente um Plano de Pormenor aprovado pode não ter depois qualquer correspondência em termos de desenvolvimento urbano. Existem em alguns concelhos Planos de Pormenor aprovados, com milhares de fogos autorizados, nas quais os promotores optaram por não tomar qualquer iniciativa. Este facto, quase nunca referido, justifica por si só um outro olhar sobre as questões temporais. A discussão sobre o carácter imperativo ou não que o processo de urbanização deve ter em função da vontade colectiva expressa nos Planos. Em Portugal apesar do discurso sistemático pró-des-regulamentação, é um facto que são os privados que ditam, desde 1965, o tempo e o modo do processo de desenvolvimento urbano.
Há ainda a magna questão dos conteúdos. Os PP´s devem valorizar a questão do desenho urbano e, sobretudo, a importância do espaço público para o desenvolvimento das cidades. Devem libertar-se do espartilho do urbanismo funcionalista que entende o planeamento, e em particular o planeamento de pormenor, como o somatório de um conjunto de intervenções especializadas – as da rodovia, a dos espaços verdes, as da edificação, etc. Um urbanismo que tende a reduzir os cidadãos à condição de consumidores e a cidade a um mero produto imobiliário e cuja apologia é feita por aqueles que se limitam a garantir o seu lugar nos itinerários produtivos da grande promoção imobiliária.
Só é possível alterar esta situação pela valorização da forma urbana e do espaço público entendido como o lugar da cidadania e não como um espaço residual ou sobrante das restantes intervenções. Um espaço público democrático, interclassista, e não como acontece com o urbanismo de produtos que o privatiza enclausurando-o, impondo-lhe a limitação do acesso, tornando-o um elemento de segregação das populações de menores recursos.
Sem corrigirmos estas omissões, mesmo que possamos reduzir em muito o tempo de elaboração do planeamento, e ainda que mudemos os nomes aos Planos, o que estamos afinal a reduzir é o tempo que nos separa de situações como aquelas que se viveram ultimamente em França e cujas diferentes análises puseram em evidência a incompreensão das dimensões especificamente urbanas, da insegurança associada à “guetização” - de pobres e de ricos - das populações e ao crescimento urbano submetido aos ditames e às dinâmicas do imobiliário.
quinta-feira, janeiro 19, 2006
Nota de abertura
Um blogue toponímico-familiar. A linha de costa que leva da Pedra do Homem a lado nenhum. Textos que lá não cabem.